Crescer no campo ou na cidade?
A Associação Crescer no Campo teve suas origens na criança e no adolescente que moravam, como diz o nome, no campo, ou seja, na roça. Preocupada que estava com aquelas meninas e meninos que perambulavam pelas estradinhas vicinais e pelo café, sem nada para fazer, comecei a reuni-los, para conversarmos em minha própria fazenda. Afligia-me o ócio, o não ter o que fazer, a falta de oportunidades, o risco social em que viviam.
Naqueles idos de 2003, ainda sem ser uma Organização juridicamente estruturada, comecei um trabalho que, mesmo precário, tirava-os da situação de vulnerabilidade em que viviam. Ajudada, por um grupo de senhoras voluntárias iniciamos algumas atividades de apoio escolar. Foi um total fracasso. A criançada não deixava de frequentar o espaço, mas ora esqueciam a mochila da escola, onde estavam guardados os seus cadernos, ora diziam que não tinham deveres e por aí iam, sempre com desculpas na ponta da língua.
Fiquei preocupada e comecei a me perguntar: o que queriam? Como eram as suas famílias? Como viviam? Como era seu acesso à informação e tecnologia? Como era sua relação com o espaço urbano? O que sonhavam? Como se alimentavam? Como era sua saúde? Gostavam de viver no campo?
Toda criança moradora na zona rural estuda na cidade e, portanto, tinham uma relação com a cidade. Como esta criança ou adolescente se reunia para trabalhos escolares em grupo, se moravam na zona rural? Grande era minha curiosidade em conhecer este público mais profundamente. Sempre com a ajuda de algumas senhoras – que saudades Neide Ragazzoni e Luzia Fernandes! – fizemos um questionário básico, calçamos nossos tênis e botas e saímos a campo, para todos os lados. Levamos uns bons fins de semana enfrentando cachorros, barro e subidas de morros.
Demos muitas risadas e o resultado desta pesquisa foi surpreendente!
Conhecendo quem mora na roça: Uma pesquisa surpreendente!
Terminei o capítulo anterior contando que fomos a campo apenas com um questionário básico, fornecido pela Assistência Social e, que, o resultado dessa pesquisa foi surpreendente.
Saímos para conhecer as famílias que moram na roça e enfrentamos cachorros, chuva e lama. Nós, moradores da cidade, imaginávamos a zona rural como o eldorado: um local cheio de pássaros, flores, árvores, águas cantantes, céu azul, famílias grandes, hortas, criações, pomares e água potável. Quando entrevistamos as 100 famílias, logo percebemos que não era bem assim.
A maioria morava em casa cedida, ou seja, em fazendas onde o marido trabalhava no campo e a mulher tomava conta da casa. Recebiam de 1 a 2 salários mínimos e a maioria das famílias tinha, pelo menos, 3 filhos com idade acima de 14 anos, significando que grande parte já tinha idade para trabalhar. O grau de escolaridade dos pais era na maioria de 2 ou, no máximo, 4 anos de estudos, porém, todos conscientes da necessidade de seus filhos frequentarem a escola.
Não encontramos hortas, criações, jardins ou pomares, porém, para a nossa surpresa, vimos televisores e aparelhos de som de última geração. Apesar dos celulares não terem sinal quase todos possuíam um, e, para serem usados, precisavam subir em árvores ou nos telhados. Esses moradores iam à cidade somente no começo do mês para fazerem suas compras. Não havendo transporte público, utilizavam-se dos ônibus escolares, iam a pé ou de bicicleta. O importante foi descobrir que essas famílias eram compostas por pai, mãe e seus filhos, uma realidade bem diferente daqueles que moravam na cidade. O sonho?
Ter casa própria na cidade.
Perguntados o que mais queriam em suas vidas e as crianças e adolescentes foram unânimes em responder: computação. Assim nasceu o primeiro Projeto da Crescer no Campo, o CyberCafé Rural e um de seus principais objetivos: inclusão social através da inclusão digital.
Com muito empenho, meu marido e eu conseguimos alguns computadores usados e a instalação de uma internet básica. Grande foi a minha emoção em poder montar aquela primeira sala de informática e ver a alegria da criançada.
Uma experiência extremamente gratificante!
A importância do combinado na educação.
Naquele tempo tudo era novidade para mim, para as educadoras, para os meninos e meninas.
Como colocar, prazerosamente, dentro de uma sala, aquelas crianças acostumadas a viver em grandes espaços? Frequentar a Crescer no Campo não era e não é uma obrigação. Eles tinham que estar lá porque gostavam, que tivessem a sensação de uma coisa boa e agradável. Como despertar todo esse sentimento, sem que houvesse uma indisciplina generalizada? Por onde começar? Lembro-me do desespero de nossas educadoras, que corriam atrás das crianças no pasto, calçando sapatos de plataforma. Como me esquecer da cena de crianças subindo no telhado e fazendo guerra de laranjas? Passamos por constrangimentos diante dos vizinhos.
Um dia pensei: assim não dá, temos que combinar com eles o que podem e o que não podem fazer. Afinal, a nossa vida é feita de direitos e deveres e deles precisamos para o bom convívio social.
Começamos, todos juntos, a ler e discutir o Estatuto da Criança e do Adolescente. Chamamos outras pessoas para conversarem com eles e acabamos por fazer uma grande roda e estabelecer os nossos princípios, ou seja, os combinados. Inteligentes e espertos, logo entenderam que, para viver em sociedade e gozar dos seus benefícios, era preciso estabelecer algumas regrinhas. Eles mesmos participaram da definição de suas próprias regras, como por exemplo: não correr dentro do núcleo, bater na porta antes de entrar, não falar palavrão, não desperdiçar papel, jogar lixo no lixo, não falar alto, falar um de cada vez e por aí vai.
Hoje em dia, os combinados são rediscutidos todo início de ano e retomados quando necessário. Se quisermos formar adultos corretos, éticos, trabalhadores e responsáveis temos que começar por aí. Essas são primícias e princípios muito importantes para a Crescer no Campo que se preocupa com a educação desses meninos e meninas e os quer sabendo viver e conviver, correta e harmoniosamente.